Crónica de Jorge C Ferreira
Andanças
Andavam às voltas por Lisboa inteira. Subiam e desciam avenidas, vielas, calçadas, com o seu som característico e o som estridente de que estavam a chegar. Corriam sobre linhas paralelas e o seu caminho estava bem definido. Sabiam das colinas da cidade, de todos os caminhos. Cantavam na Graça, assobiavam no Carmo, choravam no Alto de S. João. Passavam impantes junto ao Largo do Leão, mesmo em frente da minha escola primária, depois curvavam à esquerda e desciam até à Praça do Chile. Parecia um jogo de carrinhos amarelos sobre linhas montadas na mesa grande lá de casa. Nunca tive um jogo assim. Inventavam-se com molas da roupa, que eram de madeira, e carros feitos à mão. Eram os meus amados amarelos da Carris. O meu Avô e o meu Tio Avô, eram guarda-freios. Era desse trabalho que chegava muito do dinheiro para a vida lá de casa.
Lembro-me da inauguração do Metropolitano. Tinha dez anos. Não fui porque era muita gente e tinham medo, lá em casa, que acontecesse alguma coisa e eu acabasse esmagado entre a multidão. Diziam que ia ser o fim dos amarelos. Senti uma estranha sensação. Queria andar de metro, mas tinha pena de os amarelos irem desaparecer da minha cidade. «Ia demorar muito tempo.» Diziam-me. Na verdade, ainda andei e por vezes ando nas linhas que sobrevivem e que pensam em prolongar. Viver muitas décadas tem destas coisas. Também foi por essa altura que se decidiu o novo aeroporto. Ainda estamos à espera. De Vendas Novas a Santarém, escolham, e ainda temos o Oceano Atlântico. Decidam-se, porra! O metro ainda continua a crescer. Mas já não é o centímetro, como era apelidado na altura da pomposa inauguração.
Os mais velhos lá de casa iam continuar a ter trabalho e isso também me aliviava. A minha Avó e a minha Tia-Avó iam continuar a receber a féria dos seus homens para governar a casa. Era assim naquele tempo. Eu, quando fui trabalhar, quando recebi o primeiro ordenado, num envelope branco assim que cheguei a casa entreguei-o à minha Avó. Tinha quinze anos, era uma criança. Já tinha tirado o Curso Comercial na Veiga Beirão, já tinha a escola do Chiado, já conhecia o Bairro Alto com as suas luzes vermelhas que atravessava, a caminho do Clube Nacional de Natação, onde nadava e jogava basquete.
Depois de entrar na vida laboral, parecia que tinha crescido. No entanto, não deixava de ser a mesma criança a quem incutiram responsabilidades acrescidas. Na Igreja passei a pertencer à J.O.C., uma escola importante. Entretanto à noite subia a calçada do Sacramento para regressar à Veiga Beirão para fazer a Secção Preparatória para o Instituto Comercial de Lisboa.
Pouco tempo depois, senti que tinha perdido a fé. Foi um momento difícil. Mudei completamente. Passei a ler e procurar outros livros. A filosofia começou a ser um interesse. O novo cinema conquistou-me. Os cine-clubes nasciam. Os chaiers du cinema, o novo cinema europeu, os filmes que só conseguíamos ver à socapa numa cave de uma qualquer faculdade. A minha vida tinha mudado, embora continuasse a preferir os amarelos da Carris.
«A tua Avó, deve ter gostado muito dessa tua mudança! Tu realmente, não tens tino.»
Fala da Isaurinda.
«Eu tive tino, um tino diferente da normalidade, mas nunca fiz mal nem espezinhei ninguém.»
Respondo.
«Isso eu sei, és boa pessoa. Mas o juízo…»
De novo Isaurinda e vai, rápido, para não ouvir resposta.
Jorge C Ferreira Abril/2024(431)
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É bom viajar, por estas linhas, numa Lisboa que não conheci.
O tempo foge. Honremos as (boas) lembranças.
Um abraço.
Obrigado Sofia. Uma Lisboa antiga. Uma Lisboa vivida com raiva receio. Outros tempos. A minha gratidão pela tua presença. Abraço.
osQue bela crônica. Memórias de uma vida. Deixo-me levar através dos tempos. Os amarelos fizeram parte de mim durante alguns anos.
Logo pela manhã cedo, desciam pela calçada a lembrar que eram horas de acordar.
Por momentos senti a nostalgia e saudade dos amarelos. O meu transporte diário , quando não havia pressas. Já se pressentia que a mudança iria acontecer..
Belas meninas, Amigo.
Os amarelos no seu caminhar lento t.estemunharam vidas e mudanças.
Estavam presentes naquele Abril dos cravos. Continuarão presentes nas memórias.
Obrigada por tão belo texto.
Pedaços de vida.
Um abraço.
Obrigado Maria Luiza, Foram cinzentos esses tempos. Os Amarelos e o bilhete opetário. Percorrer a vida e lembrar os que continuamos a amar para sempre. A minhs imensa gratidão querida Amiga. Abraço enormr
Obrigado Eulália. tão bom ter-se lembrado de pedaços de vida com as minhas palavras. É sempre reconfortante ler as suas palavras. A minha gratidão. Abraço grande
Era tranquila, a Graça desse tempo.. Hoje não perdeu a graça, continua linda, mas o sossego acabou. O 28 amarelo, onde tanto viajei e me levava ao meu Chiado, lugar que tanto gosto e visito, sempre que posso. Hábitos que se enraízam em nós e gostamos de conservar. Mesmo não, “correndo como corria.”
Lembrou a infância, crescer junto da família foi maravilhoso. Tivemos que crescer, um pouco mais depressa, os tempos eram cinzentos. Mas fomos felizes e meninos responsáveis.
Como eu adoro as suas histórias, de verdade. São sempre uma boa companhia.
A minha gratidão e estima, querido escritor. Peço que dê um beijinho enorme á querida Isaurinda, pelas palavras bonitas e carinhosas, que lhe dedicou.
Estimado amigo!
Emocionado li o teu magnífico “diário”, e pergunto-me do que lembro num paralelo com o teu escrever bem apelativo.
O meu pai trabalhava na Carris onde chegou a Inspector, e lembro-me bem do desafio de uma tarde ir “inaugurar” o “Metro” em conjunto com o meu pai e mãe. Chegado a casa, escrevi – Tão bom andar debaixo de terra, tenho de repetir!
Momentos inesquecíveis, como o acto de perder a Fé … e um continuar presente.
Claro que Isaurinda, brilhou uma vez mais com um humor único!
Grato pela tua doação de excelentes leituras!
Um grande abraço com estima e gratidão!
Obrigado, José Luís, meu Amigo Poeta. As vidas que vivemos. Os carris que nos unem. Retalhos de vida e modos de vida. Passear pelos momentos que nos marcaram. Muito grato. Abraço grande